O bom médico disse uma vez que, se é verdade que os nossos sonhos nos mantêm vivos, então estamos vivendo com a ajuda de aparelhos. Fiquei pensando que é muito fácil para ele resumir aos aparelhos o seu ofício, já que ele não precisava mais do dinheiro. Passou-me uma receita que eu peguei cinicamente. E fui embora.
Naquele dia, eu não fui trabalhar. Aliás, quando eu não estava trabalhando, o fato de ter um trabalho me enchia de orgulho e me fazia grande frente aos meninos com quem sempre competi. E eles estavam todos ali, à rua. Dobrei a esquina do consultório, no caminho para casa. Achei que deveria haver alguma coisa de racional naquele diploma de Medicina, da universidade estadual. Bem, se não havia razão em plenitude, não era possível negar que eu estava perdendo, com os dias, a minha própria capacidade de sonhar. Era como uma atrofia, por falta de uso. Era isso. Era por isso que, quando chegava à realização de um sonho, eu percebia o quanto aquilo me era pouco. Ser trabalhador era um sonho? Qual! Aquilo era uma vida de labuta sem amor. Obviamente, não serve para ninguém.
Cheguei à minha mesa, na minha casa, para conferir o meu orçamento e a minha agenda. Início do orçamento. Naquele tempo, o salário era bom (eu nunca achei que merecesse aquela importância); era fácil distribuir todo aquele dinheiro entre as despesas, incluindo a última consulta com o doutor. Sobraram duzentos reais. Fim do orçamento. Início da agenda. O tempo era curto demais para qualquer coisa, incluindo a última consulta com o doutor. Para a semana seguinte, escolhi, entre namorar, estudar e passear, organizar a própria agenda, que muito me levava ao desespero. No dia 28 de abril, iria namorar; numa madrugada de julho, estudar; e no verão, passear. Eu não precisava e nem queria mencionar ali que ocuparia todo o resto do tempo trabalhando. Trabalho é pesado. Então, virei despretensiosamente a folha para um outro dia.
- Marco Antônio, 20 anos – disse o rapaz, tímido.
- Endereço? – eu perguntei, superior.
- Sim.
- Qual, filho?
- Rua Aviador Wright, 05.
- Você sabe escrever o nome do aviador?
- Sei.
- O que você pretende fazer na minha empresa?
- Suporte de jogos on-line.
- Qual sua formação?
- Licenciatura em Física pela universidade estadual. Em curso.
- Bem. Você gosta de Física e, portanto, deve saber alguma coisa sobre aviação. Como se escreve o nome do aviador?
- Com dáblio.
- Qual seu nível de Inglês, moleque?
Naquele dia, eu não fui trabalhar. Aliás, quando eu não estava trabalhando, o fato de ter um trabalho me enchia de orgulho e me fazia grande frente aos meninos com quem sempre competi. E eles estavam todos ali, à rua. Dobrei a esquina do consultório, no caminho para casa. Achei que deveria haver alguma coisa de racional naquele diploma de Medicina, da universidade estadual. Bem, se não havia razão em plenitude, não era possível negar que eu estava perdendo, com os dias, a minha própria capacidade de sonhar. Era como uma atrofia, por falta de uso. Era isso. Era por isso que, quando chegava à realização de um sonho, eu percebia o quanto aquilo me era pouco. Ser trabalhador era um sonho? Qual! Aquilo era uma vida de labuta sem amor. Obviamente, não serve para ninguém.
Cheguei à minha mesa, na minha casa, para conferir o meu orçamento e a minha agenda. Início do orçamento. Naquele tempo, o salário era bom (eu nunca achei que merecesse aquela importância); era fácil distribuir todo aquele dinheiro entre as despesas, incluindo a última consulta com o doutor. Sobraram duzentos reais. Fim do orçamento. Início da agenda. O tempo era curto demais para qualquer coisa, incluindo a última consulta com o doutor. Para a semana seguinte, escolhi, entre namorar, estudar e passear, organizar a própria agenda, que muito me levava ao desespero. No dia 28 de abril, iria namorar; numa madrugada de julho, estudar; e no verão, passear. Eu não precisava e nem queria mencionar ali que ocuparia todo o resto do tempo trabalhando. Trabalho é pesado. Então, virei despretensiosamente a folha para um outro dia.
- Marco Antônio, 20 anos – disse o rapaz, tímido.
- Endereço? – eu perguntei, superior.
- Sim.
- Qual, filho?
- Rua Aviador Wright, 05.
- Você sabe escrever o nome do aviador?
- Sei.
- O que você pretende fazer na minha empresa?
- Suporte de jogos on-line.
- Qual sua formação?
- Licenciatura em Física pela universidade estadual. Em curso.
- Bem. Você gosta de Física e, portanto, deve saber alguma coisa sobre aviação. Como se escreve o nome do aviador?
- Com dáblio.
- Qual seu nível de Inglês, moleque?
Ele tremia e me fez perceber.
- Leitura e escrita, intermediário; conversa, básico – respondeu, enojado de si mesmo.
- Não sabe que é preciso saber falar Inglês por causa de uma série de coisas?
- Sei.
- Qual sua experiência profissional?
- TEL Telefonia. Junho de 2004 a Dezembro de 2004. Suporte para assinantes.
- Telemarketing?
- Sim.
Aquilo estava sendo tão doloroso que senti pena do menino.
- Só isso?
- Sim.
- Existe alguma coisa a mais que você queira me dizer para me convencer a contratá-lo?
- Conhecimento de vários jogos on-line do tipo MMORPG.
Logo eu pude parar de prender a respiração, e recuperar o fôlego. A conversa cortou-me de tal forma que eu não resisti ao menino, que mal podia me encarar, e o abracei. Eu não tinha um emprego para lhe oferecer – e talvez nunca venha a ter uma empresa –, mas dei um abraço fraterno porque percebi que eu era igual a ele. E ele era um daqueles meninos com quem sempre competi. E como pode um menino sonhar tão pouco? Talvez fosse um pobre menino que, já que não sabia viver, sobrevivia. Talvez não pudesse viver.
Fim da agenda.
Anos mais tarde, quando não havia mais a necessidade de trabalhar, encontrei a velha agenda. Voltei ao velho consultório para refazer um velho caminho de volta para casa. Cheguei ao consultório e encontrei, para minha felicidade, o Marco Antônio, que havia se tornado um médico. Um bom médico.
- Médicos não são melhores que pobres meninos.
- É verdade. Você está contratado!
2 comentários:
Paz e bem, Maternura.
No meu blog tb tem um texto falando sobre esses papos com doutores. hehehe
espero vc lá!
beijo
Salve!
E o que nós leitores temos haver com o TCC de vcs?
e tenho dito. hoje, sem beijos barbudos.
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