sábado, maio 23, 2009

Expresso da Ponderação Ltda.

em: Câncer

— Permita-me fazer uma visita.
— Como sempre, você foge à média. Quanto a mim, fico à janela, pois fumo.
— Quero dar voz a um raciocínio que há muito me instiga.
— E que assunto o aflige?
— Economia, política, questões sociais, meio ambiente.
— Quatro ciências, um mundo.
— De fato, não gosto de ciências fragmentadas. Separadas, não dão conta da complexidade do mundo.
— Para quem já comeu cursinho, você arrota um ar de cientista, de autêntico cientista, daqueles interessados em analisar o âmbito geral das questões e em fazer as perguntas fundamentais. Quem dera se todos os conservadores fossem assim. Sou conservador, mas sou assim.
— Muito ponderado da sua parte. Quem dera se todos os progressistas tivessem a sua ponderação e a sua capacidade de ouvir.
— Tenho boa audição ao que me interessa, confesso.
— Peço que também se expresse diante dos temas; a crise não escolhe ideologia.
— Aceito de bom grado, já que nossas diferentes visões de mundo não impedem o avanço do debate.
— O mundo precisa do debate.
— Feita a esclarecedora introdução, sou todo ouvidos e boca para a sua exposição.
— Bem, penso que há uma grave distorção em, a exemplo do que fazem governos, empresas e muitas pessoas físicas por aí, supervalorizar a economia em detrimento de outros aspectos mais fundamentais da sociedade, como o bem-estar social ou o meio ambiente.
— A meu ver, a economia forte é o pilar sobre o qual se sustentam as outras questões; grosso modo, é preciso dinheiro para projetos sociais e de preservação.
— Isso faz algum sentido, mas me parece que essa é uma visão um tanto inocente da economia, considerando que alguém ganha muito dinheiro no meio do processo, às custas da necessidade de se haver economia forte, que é quase um pretexto.
— Ganha. Difícil é enxergar problema nisso, mas que ganha, ganha.
— Penso que não podemos analisar essas venturas de forma individual. Se o dinheiro é o mesmo para quem ganha e para o vizinho que, alheio, não ganha, o lucro tem de ser analisado dentro de um contexto que envolva toda a sociedade; ora, quem lucra e quem não lucra vive no mesmo espaço e sob as mesmas regras (inclusive sob a mesma moeda). E você há de reconhecer que há desigualdades gritantes no Brasil e no mundo. Algo está desajustado na engrenagem, para usar a desgastada mas sempre didática metáfora da máquina.
— Sempre existiram desigualdades; aliás, você há de reconhecer que o capitalismo as diminuiu em relação à conjuntura das castas medievais.
— Há gente passando fome no Brasil, por exemplo. E a forma mais barata de se promover transformação a essa conjuntura medieval é fazendo a reforma agrária. E a reforma agrária é grande ameaça para a economia sólida do superávit, da soja, da exportação de commodities.
— A reforma agrária é mesmo urgente. A Constituição democrática, aliás, garante as terras sem uso para esse fim urgente. E decerto há uma intersecção entre os lucradores do campo e os contrários a tal reforma. Nisso, concordo, há conflito de interesses, sendo que apenas um deles constitui o interesse público. A questão é saber se os interesses individuais e a exceção das corrupções constituem toda a distorção que você ora apresenta.
— Pois a distorção que eu mencionei me parece geral e irrestrita: não exclui os honestos. Há sintomas espalhados por todos os lugares. Por exemplo, quanto aos dias comemorativos. O valor comercial do Natal, por exemplo, já sobrepôs a confraternização de um dos poucos momentos do ano reservado para esse fim. E a economia está muito interessada na comercialidade de tais datas, verdadeiros oásis do calendário para as vendas. Assim como o bis dos shows que a gente vê, as datas já foram de tal forma artificializadas que os vendedores já sabem de antemão que precisam ficar atentos nas proximidades dessas ocasiões para faturarem mais, honestamente, com a confraternização alheia.
— Pense que o comércio pode se aproveitar das relações humanas sem se sobrepor a elas.
— Não quando todos os aspectos da vida, desde a saúde do coração até a afetividade, são mercantilizados.
— Trata-se da dor e da delícia de ser comerciante. Negócio bom, que gera empregos - a começar pelos nossos.
— Verdade. Inclusive os nossos.
— Gera impostos para o país, e paga os direitos trabalhistas...
— ... Que querem amenizar no Congresso.
— Verdade. A própria crise econômica é desculpa para, muitas vezes, governos, empresas e pessoas físicas jogarem no lixo certos direitos trabalhistas.
— E a crise, inerente ao capitalismo, afeta com muito mais impacto os países pobres, que não dispõem de recursos para subsidiar reação ao aumento no preço dos alimentos, por exemplo. Note que é sempre nas costas do proletariado que o mundo pesa mais.
— Eric Hobsbawm diz com muita sabedoria que os escritos de Marx devem ser tomados mais como forma de analisar o sistema do que como instrumento ideológico.
— É sintomático que mencione isso após terem "decretado" o fim da História.
— Que foi uma besteira equivalente aos que, hoje, promovem um socialismo aos moldes cubanos.
— Proponho dar forma política ao que diz o coração humano.
— Prefiro um pragmatismo que seja dotado de algum coração.
— Por falar em insuficiência cardíaca, há um outro sintoma interessante, irônico e ilustrativo para a minha conclusão. Mais que um sintoma, um quadro, um quadro que explica os outros sintomas.
— Com tal diagnóstico, parece que estamos tratando de uma doença.
— Chame como quiser. Mas que é preciso tratamento, isso é.
— Fico aliviado pois nenhum tipo de intervenção cirúrgica era pressuposto da conversa ponderada.
— E nos casos que ameaçam a vida? Pois as coisas que favorecem a economia são sempre prejudiciais à vida.
— Não tenho isso muito claro, embora não brigue contra os fatos. Vamos a eles.
— Veja o consumo desenfreado dos recursos naturais na indústria, a dieta de alimentos transgênicos e de agrotóxicos que aumentam a produtividade no campo, a destruição de cavernas e o represamento de rios vivos do Vale do Ribeira para a construição de hidrelétrica para atendimento exclusivo a uma usina de alumínio da Votorantim. Tudo isso aí que você está vendo em torno do aquecimento global e da ameaça à vida humana no Planeta. Sempre mais coisa quebrada numa mesma engrenagem, sempre menos mecânicos para identificar e solucionar o problema. Trata-se de um ciclo, e a parte que favorece a economia é a mais difícil de transformar. Ciclo burro, viciado, desses com que a gente tem de aprender a conviver.
— Como o cigarro.
— Sim, que é vício para fumantes com malefícios também para os não-fumantes.
— Já vou apagar.
— O ciclo só pode mostrar que um sistema tão firme e cegamente baseado na economia (e no seu modus operandi sem escrúpulos) nos leva inevitavelmente à morte, ainda que a gente jure de pé junto que não quer morrer; uma morte quase inconsciente, se não fosse por pessoas como eu. Conclusão: ou a gente mata o sistema, ou ele nos mata.
— Proponho quimioterapia.
— Depois da cirurgia.
— Vamos esperar a evolução.
— Prefiro prevenção.
— Pelo menos fumo em área aberta.
— É proibido fumar na Estação Querida. Quando chegarmos, vão apagar seu cigarro.
— Achava que os chefes de estação eram mais ponderados do que isso; muito críticos, mas ao menos um pouco ponderados.
— O bastante para respeitarem uma conversa ponderada de um progressista que fala e ouve e de um conservador que ouve e fala.
— Mas, pelo jeito, não o bastante para o vice-versa.

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